Os guardiões do fogo e da vida no cerrado

O Governo e setores ruralistas tentam responsabilizar a devastação da região Amazônica aos povos indígenas. A #BrigadasAmazônia da Mídia Ninja foi até as aldeias do povo Xavante para conhecer a resistência desse povo que protege a região há centenas de anos.

Texto por Caio Mota e fotos por Raíssa Azeredo para Brigada NINJA Amazônia.

Quilômetros de grandes fazendas para criação de gado e extensas plantações de soja e arroz deixam de ser a única paisagem ao longo da BR 158 quando a estrada corta as Terras Indígenas (TIs), na região do Araguaia Mato Grossense. É aqui, na fronteira dos biomas Amazônia e Cerrado, que mais se desmata. E é nessa época da seca que os incêndios e os conflitos ficam mais intensos. 

Os A´uwe, conhecidos pelos não indígenas como povo Xavante, protegem o Cerrado Amazônico há centenas de anos. O cacique José Guimarães Sumene Xavante aponta com o dedo para os limites da TI Pimentel Barbosa. O terceiro território indígena mais impactado pelo fogo, em 2019, no estado de Mato Grosso.

“Aqui é o silêncio do Cerrado, do Roncador. Aqui a gente estamos esperando a comunicação da nossa espiritualidade, do nosso futuro. Olha aqui o vento. O vento é nossa inspiração, é a vida!”, exalta o cacique. 

A aldeia Santa Cruz Ripá, em que Sumene é cacique, foi criada em 2012, para fortalecer a proteção do território Xavante. A aldeia fica ao pé da Serra do Roncador. Um local sagrado para os indígenas. Uma imensa cordilheira que divide as águas do Araguaia e Xingu entre os estados de Mato Grosso e Pará. “O silêncio do Cerrado”, da qual Sumene se refere, é interrompido quando pela noite o vento passa pelos paredões da Serra provocando um som grave parecido com o ronco de uma pessoa dormindo, um acontecimento que dá nome ao local considerado mítico por pesquisadores, cientistas e aventureiros de todo mundo. 

Mas existem outros temas que estão cortando esse silêncio. “O Governo! Ele quer acabar com a gente”. O cacique expressa uma preocupação compartilhada por todas as lideranças do território. As pressões externas estão invadindo cada vez mais a terra indígena. Além das ações criminosas de desmatamento ilegal na região, da contaminação das águas pelo veneno das plantações de soja e dos projetos de estradas e hidrelétricas previstas para região, em 2019, os discursos incendiários do presidente Jair Bolsonaro tem interferido para o aumento dos conflitos nos territórios.  

“Eu respeito o governo, mas ele também tem que respeitar nós. Porque ele não está respeitando nós? Porque ele não sabe nossa vida, nossa cultura. Meu pensamento: o Governo ele quer destruir a nossa cultura, então, a gente que mora na aldeia, a gente tem que ter força e continuar nossa cultura para o futuro.”, o sentimento de resistência é do professor Xavante, Gilson Homopé. Ele dá aula na aldeia Ripá para crianças e considera fundamental enfatizar no ensino a importância do Cerrado.  

“O Cerrado que a gente tem aqui estamos respeitando e cuidando do nosso Cerrado. Não é como o branco que está gradeando, derrubando floresta”. Gilson se refere ao forte avanço na região das grandes fazendas, que fazem limite com as TIs. Processos de invasão dos territórios indígenas, que iniciaram com forte incentivo da Ditadura Militar, com a SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), na década de 1960. Ações violentas que perduram até os dias de hoje.  

Em 10 meses como presidente, Bolsonaro colocou em prática as propostas de sua campanha eleitoral, que promoveram fortes ataques aos povos e comunidades tradicionais e ao meio ambiente. O desmonte das políticas socioambientais, iniciadas em janeiro, somado às drásticas mudanças nas instituições e políticas ambientais, que estão em curso e enfraqueceram órgãos já debilitados como Funai, IBAMA e ICMbio, favoreceram para o aumento das violações de direitos de comunidades tradicionais e periferias urbanas, o agravamento dos conflitos no campo e mais crimes ambientais. Uma catástrofe premeditada e que é o tema da principal crise internacional do atual governo.

Fogo e Vida no Cerrado

Nos meses da seca, entre agosto e outubro, o fogo é o elemento predominante no Cerrado. Para cultura Xavante, ele faz parte da vida. É o fogo que mantém acesa as tradições do calendário cultural do povo. As caçadas tradicionais, rituais e festas necessitam do fogo para existir. 

Como é possível garantir que o fogo da cultura A´uwe-Xavante não destrói a vida do Cerrado Amazônico? A resposta está na estreita relação dos indígenas com esse território. “Os nossos antepassados viviam com as queimadas no período da seca. Tem calendário próprio dele que o povo Xavante vive com a queimada”, explica o professor Xavante Valter Teihi A`Bhoiodi. 

Ele ressalta que o povo Xavante vive nessa região há centenas de anos e aprendeu a controlar o fogo para manutenção da vida no Cerrado.

“A queimada no período da seca, mais ou menos mês de agosto e setembro não destrói nada porque depois do mês de setembro, em novembro, vai voltar a chuva e vai florescendo os vegetais. Não devastando nosso território”,

reforça Valter sobre o rápido poder de recuperação do Cerrado. 

No período em que Bolsonaro está como presidente o desmatamento na Amazônia teve os maiores índices da última década. Com crescimento 29,5% em comparação com o ano de 2018, segundo dados do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Já no Cerrado, os alertas do instituto mostram que o desmatamento ilegal continuam intensos. Apenas 13 pedidos de corte de vegetação foram autorizados e 802 alertas de desmatamento ilegal foram registrados na região.

Em Mato Grosso, 85% do desmatamento registrado pelo INPE, entre 2018 e 2019, foi realizado ilegalmente. O estado, que é o maior produtor de soja do Brasil é o campeão em focos de queimadas com mais de 30 mil registros. Um crescimento de 74% em comparação com o ano de 2018.

O Instituto Centro de Vida (ICV) realizou avaliações semanais sobre os incêndios, em MT, durante o período da seca. 52% dos focos de queimadas estão em propriedades rurais cadastradas (CAR) e 18% das ocorrências aconteceram em Terras Indígenas, de acordo com levantamento da organização. Nos demais estados o aumento de queimadas em TIs foi de mais de 80%, segundo dados do CIMI (Conselho Indigenista Missionário).

O Instituto Centro de Vida (ICV) tem publicado avaliações semanais sobre os incêndios, em MT. 52% dos focos de queimadas estão em propriedades rurais cadastradas (CAR) e 18% das ocorrências aconteceram em Terras Indígenas, de acordo com levantamento da organização. Nos demais estados o aumento de queimadas em TIs foi de mais de 80%, segundo dados do CIMI (Conselho Indigenista Missionário). 

A destruição das florestas no período da seca segue o rastro do desmatamento. Depois que se derruba a floresta ilegalmente por madeireiros, os grileiros usam o fogo para “limpar” a área desmatada para venda dos terrenos. Uma ação que tende a aumentar, pois vem sendo encorajada pelo Governo Bolsonaro, já que as fiscalizações, historicamente precárias, estão inviabilizadas e a garantia de impunidade sobre esses crimes é ainda maior.

Mesmo com todos os dados científicos, muitos deles produzidos com base em informações oficiais do Governo, ruralistas e o Planalto tem atuado conjuntamente para minimizar as informações sobre conflitos e responsabilizar povos indígenas e organizações ambientalistas pelos grandes incêndios e devastação das florestas.  

O Governo atual não colabora. Apenas incentiva para promover uma destruição em relação a situação dos povos indígenas. Não tem uma colaboração que possa beneficiar os povos indígenas

enfatiza o professor Xavante Oscar Waraiwai Urebete. Para ele o Governo adota uma atitude oportunista para aumentar o preconceito contra os povos indígenas e ampliar as pressões nos territórios entre fazendeiros e comunidades tradicionais. 

“Antigamente eu posso dizer que a educação serviu como instrumento de dominação e colonização dos povos indígenas. Hoje, na conjuntura atual, a escola atua em nosso favor. Está servindo como se fosse instrumento de valorização das nossas identidades. Por meio dela que nós conseguimos imprimir as nossas culturas, as nossas tradições. A escola hoje é o espaço onde o povo Xavante tem possibilidade de trabalhar o conhecimento tradicional, revitalização dos conhecimentos que ainda continuam existindo. Então a escola atua em nosso favor.”, reflete Oscar ao apontar a educação como forma de resistência para os povos.  

“O clima está mudando nesse momento. O meio ambiente um dia vai dar resposta para o homem que estão destruindo todos os matos que temos nesse país.”, alerta Nilson Tsa’e’omo’wa sobre o aquecimento global, que é outro tema negligenciado pelo Governo Bolsonaro. 

A principal entidade que representa os povos que vivem no Território Indígena do Xingu, ATIX, foi uma das primeiras organizações indígenas a desmentir os argumentos do Governo de que os povos originários sejam os responsáveis pelos grandes incêndios na região Amazônica. 

A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) realizou durante os meses de outubro e novembro de 2019 a principal agenda de denúncia internacional contra as irregularidades e violações de direitos cometidos pelo Governo Bolsonaro. Uma delegação de 8 lideranças indígenas de todas as regiões do país irão percorrer 12 países da Europa na Jornada Sangue Indígena Nenhuma Gota a Mais”. 

Descontrole, Invasões e Desgoverno

Em 2019, sete das dez terras indígenas mais atingidas pelos incêndios, em Mato Grosso, são do povo A´uwe-Xavante. De acordo com as lideranças, a maior parte dos focos parte de fora dos limites das terras e não estão associadas ao fogo utilizado dentro da cultura Xavante. 

Carlos Henrique Orebewe caminha entre as cinzas das casas de sua aldeia. Foi a única dentro dos territórios Xavante que teve todas as casas destruídas por um incêndio. Ele conta emocionado sobre o dia 8 de setembro, que todos da Aldeia Rainha da Paz foram surpreendidos por um grande incêndio, dentro da TI São Marcos que pegou todos de surpresa. “Eu consegui tirar só meu tio que tem deficiência. Ele é paralítico. Quando tirei ele o fogo já estava em outra casa”, relata. 

“Eu me lembro que quando eu tirei meu tio, os meus filhos, as crianças, as mulheres que estavam aqui no dia. Minhas tias, minhas primas. Eles corriam pro caminho do rio só que não tinha como ir porque tava pegando fogo de um lado e do outro. Então ficou difícil, nós ficamos debaixo dessa mangueira que era o único local que podia se proteger. E não tinha como também sair com o carro aqui da aldeia, porque tava pegando fogo tudo ao redor e a rede elétrica também caiu no chão energizada, então ficou muito difícil”, relata Carlos que filmou parte dos acontecimentos daquele dia. Ele descreve com detalhes os momentos críticos que não aparecem nas imagens do vídeo que gravou. 

A destruição da aldeia Rainha da Paz tem relação com um contexto cada vez mais frequente dentro das terras Xavante. As queimadas que iniciam fora dos limites dos territórios indígenas e invadem as terras de forma descontrolada. Seja de maneira proposital por ação de fazendeiros e grileiros ou acidental, ambas têm causado grandes conflitos. Carlos ressalta a diferença dos incêndios descontrolados para as queimadas provocadas pelos Xavantes, que sao feitas em períodos específicos e distantes das aldeias. “Esse fogo ele veio de longe. Não foi um fogo colocado pelos Xavantes, né? Porque nós temos a caça que nós caçamos, mas não foi colocado porque a nossa caçada terminou já tem mais de 2 meses, né?”, enfatiza. 

Os 10 Territórios Xavantes localizados na região do Araguaia Mato Grossense sofrem muita pressão externa. Conflitos relacionados a invasões dentro da terra ficam mais evidentes no período da seca e o fogo deixa de ser um elemento de renovação da vida no Cerrado para ser o combustível das destruições. 

Hoje a Funai é presidida por um ex-delegado da Polícia Federal (PF) que atuava na região do município de Barra do Garças (MT), na região dos territórios Xavantes. Marcelo Augusto Xavier foi nomeado com as bênçãos da bancada ruralista. Atuou, em 2016, como assessor da CPI da Funai, comandada por parlamentares representantes do agronegócio, que é um dos instrumentos usados pelo Governo como argumento para questionar as demarcações de terras indígenas. Um cenário perigoso para garantia dos direitos dos povos indígenas. 

No último dia 10 de outubro, uma ação de invasores dentro da TI São Marcos acabou levando para prisão o cacique da principal aldeia da TI e não o invasor. O caso ainda é coberto de incertezas, mas salta aos olhos a velocidade da ação policial e da justiça em decretar a prisão preventiva do cacique Robson Tsu’A Tsere Urâ em favor de uma ação de invasores. É comum os Xavantes fazerem a expropriação de carros e caminhonetes de invasores de suas terras como um ato político de defesa do território. O cacique foi preso em flagrante pela PF acusado de extorquir o invasor. 

O cacique Robson teve liberdade concedida pela Justiça de Mato Grosso no dia 15 de outubro. O desembargador Pedro Sakamoto em sua decisão ressalta que não está evidente “os fundamentos da prisão preventiva” e reforça que o cacique por não possuir antecedentes criminais pode responder a ação em liberdade. 

Semanas antes da prisão de Robson, quando a Brigada Amazônia passou pela aldeia São Marcos, o cacique já enfatizava os problemas vividos pelas comunidades Xavantes e alertava sobre o momento de risco aos direitos dos povos indígenas.

“Eu vou defender o meu povo, eu vou defender o nosso direito. E não vou vender o meu povo. E não vou vender na minha área demarcada. Respeita pra nós e respeita nosso direito indígena”, foi uma das mensagens que o cacique passou. 

A violência no campo no Brasil está crescendo nos últimos 4 anos. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram registrados 1.489 conflitos no campo, em 2018, envolvendo cerca de 1 milhão de pessoas nesses episódios, em que a maioria dos casos está na região da Amazônia Legal. 

Os A´uwe-Xavante são historicamente conhecidos por serem guerreiros, mas também por serem um povo “sonhador”. Para os Xavantes o sonho é um fator importante de poder. É nos sonhos que surgem os ensinamentos e a proteção dos ancestrais. Os “próximos passos” são dados primeiro nos sonhos para que virem realidade. Sem a luta do sonho do povo Xavante para o reconhecimento e demarcação de suas terras, hoje, o Cerrado Amazônico seria um imenso latifúndio dedicado aos interesses do agronegócio. 

“Nossos ancestrais. De todos os povos. Não tinham essa prática da destruição. Nós somos verdadeiros conservadores da natureza. Imagina se não tivesse existido povos indígenas no continente brasileiro e nos outros continentes. O que seria do mundo sem a presença dos povos indígenas. Nós atuamos como se fosse salvadores da humanidade. A natureza que nós preservamos, eu posso dizer, é o pulmão da humanidade”, reflete o professor Xavante Oscar  Waraiwai Urebete sobre o seu sonho que já é realidade. 

 

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