“Ele incentiva a violência contra os povos indígenas”, diz liderança do Xingu sobre discurso de Bolsonaro
Diante da recente investida do governo Bolsonaro de responsabilizar os grandes incêndios na Amazônia e a devastação do meio ambiente aos povos indígenas, a Brigada NINJA Amazônia foi até o município de Canarana, no Mato Grosso, escutar o presidente da primeira entidade indígena a se pronunciar publicamente sobre o assunto.Ysani Kalapalo foi escolhida pelo governo para ser a representante indígena na comitiva presidencial na ONU. Conhecida por ser apoiadora de Bolsonaro (desde a campanha eleitoral de 2018) e opositora agressiva das lutas dos povos indígenas, a youtuber foi a Nova York após publicar um vídeo onde isenta Bolsonaro sobre as queimadas na Amazônia, um dos temas centrais da principal crise internacional do atual governo.
“A gente entende como uma agressão muito grave para nós”. A indignação é do presidente da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), principal entidade que representa os povos que vivem no Território Indígena do Xingu. Encontramos Ianukula Kaiabi Suia em meio às repercussões da participação do presidente Jair Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU. Um momento de forte ataque do governo aos povos originários, que utilizou uma indígena do Xingu para encobrir os desmontes nas políticas ambientais e responsabilizar os grandes incêndios na Amazônia aos povos da floresta.
Os povos indígenas do Xingu publicaram uma carta de repúdio à inclusão de Ysane na comitiva que foi à Assembleia da ONU. “O governo brasileiro não se contentando com os ataques aos povos indígenas do Brasil, agora quer legitimar sua política anti-indígena usando uma figura indígena simpatizante de suas ideologias radicais com a intenção de convencer a comunidade internacional de sua política colonialista e etnocida”, denuncia trecho da carta assinada por 14 caciques, incluindo o do povo Kalapalo.
A “Brigada Amazônia” da Mídia NINJA percorreu diversos territórios amazônicos devastados pelo desmatamento ilegal e por grandes incêndios. Fomos até o município de Canarana, a 834 km de distância da capital Cuiabá, em Mato Grosso, para conversar com o líder do povo Kawaiwete e presidente da Atix sobre como a posição do governo pressiona a vida dos povos do Xingu e aumenta os conflitos na região.
“Os povos indígenas já são discriminados, já sofrem preconceitos, são violentados em suas terras indígenas por defenderem seus direitos. Nós estamos falando de violência física mesmo, de morte de algumas lideranças indígenas dentro do Brasil que defendem seus direitos. O discurso do presidente não ajuda nisso, ele incentiva a violência contra os povos indígenas”, destaca Suia.
Confira a entrevista completa:
Mídia NINJA: Como os povos do Xingu têm sentido as interferências do governo na governança dentro do território indígena do Xingu?
Ianukula Kaiabi Suia: O território indígena do Xingu tem 16 povos que habitam e nós temos um sistema de cuidar da terra, de tomada de decisões, uma governança indígena, que ela não foi criada de um dia pra noite. Isso é uma coisa que vem desde sempre, esse espaço de conversas, de diplomacia entre os povos do Xingu, isso não surgiu do dia pra outro.
Na medida em que os povos indígenas foram colocados em um território, só há uma necessidade grande de se reorganizar novamente pra poder ter um convívio da melhor maneira possível: respeitando a diversidade cultural de cada um, a cosmologia de cada um, a forma de pensar, as suas culturas, suas línguas, enfim as suas manifestações próprias.
Isso tem sido, durante muitos anos, uma demonstração de que povos diferentes têm sim condições de viver em harmonia. Todo esse processo de representatividade de cada um desses povos tem um processo que precisa ser respeitado.
Para uma pessoa chegar ao ponto de ser considerada um cacique ou então uma liderança de referência de um povo, ele tem atribuições, tem critérios. A formação de um cacique de um povo indígena, por exemplo, passa por um processo muito rigoroso onde as pessoas aprendem a ser lideranças de fato. Isso é feito dentro das famílias dos caciques desde a infância dos jovens, das meninas, como é que se tem a postura de uma liderança indígena. Isso leva anos. Então a representatividade do Xingu quando se expressa pra fora, quando não é feita de uma forma adequada, ela transgride todo esse sistema, todos esses valores que, pra nós, têm uma importância imensa.
Toda vez que tem uma representação que não é legitimada pelos povos indígenas do Xingu, fere tudo isso. Pode parecer uma pequena coisa ao mundo do homem não-indígena, uma coisa talvez um pouco sem sentido, mas é um valor que significa honra para os povos indígenas do Xingu.
Então, no caso, o fato que ocorreu a nível nacional, por iniciativa do presidente da República, em destacar uma pessoa que no entendimento dele tem alguma representatividade, principalmente sobre os povos indígenas do Xingu, a gente entendeu como uma agressão muito grave pra nós. Uma agressão em relação a todos esses valores do que representa uma liderança indígena.
Não existe um conflito por causa disso dentro do território indígena do Xingu. Existe um consenso que nós temos claro a forma como indicamos nossas representações. É sempre através de lideranças renomadas ou através de nossas organizações, hoje compostas juridicamente como a Atix é hoje.
MN: Como você enxerga o governo usando uma indígena do Xingu para tentar legitimar ataques aos povos indígenas?
Ianukula: A gente já conhece quais são os planos do governo. Desde a campanha de 2018 já temos um entendimento do que ele planeja, qual é o plano que ele pretende aplicar para os povos indígenas. Com muitos desses planos a gente não se identifica.
Talvez a gente possa falar isso de uma forma mais ampla, que é o termo integração que o governo vem falando desde a época da campanha. A “integração” no nosso ponto de vista já é superada pela Constituição Federal de 88, onde está assegurado para os povos indígenas o direito de manifestação própria de forma de organização, o modo de vida dos povos indígenas. Isso se traduz como uma outra forma de dizer que a diversidade cultural dos povos indígenas não é um obstáculo, é uma riqueza a ser somada com o povo brasileiro.
Parecia que a sociedade brasileira estava entendendo isso e de um momento para o outro nós estamos voltando ao entendimento de um índio tutelado. De um índio que tem que ser integrado à sociedade, ou seja, deixar a sua própria forma de viver para viver com a sociedade não-indígena.
Isso é uma desconsideração à forma própria dos povos indígenas de ser o que são. E pra poder demonstrar essa visão de que a integração é positiva para os povos indígenas o governo lamentavelmente traz junto de si pessoas que também pensam dessa forma, mas que não representa a maioria do pensamento dos povos indígenas.
Nós temos 305 povos indígenas hoje no Brasil e a gente acredita que essas ideias que o governo está apresentando não correspondem à nossa realidade, não são os nossos anseios. Existem as nossas necessidades. A gente é consciente também de que as necessidades do homem branco chegaram aos povos indígenas, pelas necessidades básicas de você ter coisas para trabalhar na roça, pra você ter o mínimo possível para ter uma boa saúde, isso são necessidades básicas, mas dizer que os povos indígenas têm que deixar de ser quem são para ter esses benefícios é uma ilusão muito grande.
Nós podemos ser, podemos continuar vivendo nas nossas terras preservando as florestas, rios, animais. Existem formas de as comunidades indígenas obterem rendas financeiras e continuarem vivendo seu modo de vida.
O que se fala muito hoje é que as terras indígenas têm que ser exploradas, mas de que forma? Do ponto de vista do governo? Através da monocultura? Da exploração de minérios? Esse não é o entendimento dos povos indígenas. Nós temos potencialidades, mas não é esse o caminho.
Aqui no Xingu já demonstramos isso e estamos mostrando isso para o mundo. Eu digo no sentido real mesmo. Para o mundo! Porque nós temos uma produção orgânica, é uma experiência muito interessante que está hoje em andamento, que em 2017 já ganhou prêmio internacional através da ONU como uma das 15 iniciativas que precisam ser seguidas pelo mundo ou então ser vista de modelo para conservação e sustentabilidade no mundo das florestas. E agora, em 2019, nós fomos premiados também pela ONU através da produção de óleo de pequi do povo Kĩsêdjê, também do Xingu, demonstrando mais uma vez que é possível, que as experiências estão aí.
Então, se o governo realmente quer ajudar os povos indígenas, tem que levar em consideração essa especificidade de que não existe um modelo único para o desenvolvimento. Desenvolvimento entre aspas, né? Pois para os povos indígenas do Xingu a gente fala hoje em etnodesenvolvimento. Não é o desenvolvimento convencional, é o etnodesenvolvimento. É o desenvolvimento dos povos indígenas respeitando sua cultura própria.
MN: Qual sua opinião sobre o discurso do presidente Bolsonaro na ONU?
Ianukula: O discurso dele é lamentável. Porque o presidente apenas replica o que já vinha falando na sua campanha, que a gente tinha esperança de que isso mudasse a partir do momento em que ele assumisse o poder e começasse a ver a questão indígena de uma forma mais realista, mas até o momento a gente não viu isso.
O discurso perante as representações internacionais na ONU deixa claro que talvez o presidente ainda não está muito disposto a entender a realidade indígena. Já existe um plano pré-estabelecido que não quer se moldar ao que os povos indígenas hoje anseiam. Os povos indígenas já são discriminados, já sofrem preconceitos, são violentados em suas terras indígenas por defenderem seus direitos. Nós estamos falando de violência física mesmo, de morte de algumas lideranças indígenas dentro do Brasil que defendem seus direitos. O discurso do presidente não ajuda, ele incentiva a violência contra os povos indígenas, a invasão de terras indígenas, o preconceito e o racismo contra nós, povos indígenas.
O discurso não foi positivo para nós. O presidente desrespeitou uma das maiores lideranças indígenas no Brasil, o cacique Raoni Metuktire, que tem uma trajetória respeitada, que precisa ser respeitado.
O Raoni não é reconhecido por atuar somente pelo povo dele, o povo Kayapó, a trajetória dele é em prol dos direitos dos povos indígenas do Brasil. E isso precisa ser respeitado. O presidente precisaria ter respeitado isso. Não havia necessidade de um ataque como ele fez.
MN: Como visualiza a tentativa do governo em transferir a responsabilidade dos grandes incêndios e da devastação da Amazônia para os povos indígenas?
Ianukula: Vou voltar um pouco no discurso do presidente. Nós, povos indígenas, entendemos que a nossa Constituição diz que não existe uma religião que governa o Brasil, mas não é isso que estamos vemos no discurso do presidente. Ele inclusive cita uma versão de uma religião que não é da religião do brasileiro ao todo e nem dos povos indígenas. Inclusive nós, povos indígenas, somos vítimas até hoje dessa prática de imposição de religiões que não são dos povos indígenas de uma forma violenta. Isso está acontecendo silenciosamente, são culturas que estão deixando de ser praticadas por imposição de algumas religiões que não são indígenas.
Essa visão religiosa quando chega ao poder acaba desmerecendo a ciência, desconsidera e desrespeita outras formas de pensamento, outras manifestações culturais, como a que os povos indígenas têm.
Isso é uma situação muito grave. A que valores o governo hoje trata a sua diversidade cultural? Isso é muito perigoso. É por isso que vem essa ideia de que precisa ter uma integração. Pra desfazer da diversidade cultural dos povos indígenas? É isso? Se desfazer de um dos seus maiores valores que hoje enriquece o povo brasileiro. Deveríamos ter o orgulho de ter essa diversidade e parece que o governo atual não está satisfeito com isso.
Sobre a grave situação da Floresta Amazônica hoje, que está em visibilidade sobre os inúmeros focos de queimadas que aconteceram e que já foram demonstrados pelo próprio órgão do governo especializado nisso através de meios científicos, que foram desconsiderados e depois disseram que os povos indígenas é quem têm culpa nisso. Isso é um absurdo. Qualquer brasileiro que busca informações reais verão que muitos focos de queimadas na Floresta Amazônica não estão dentro das terras indígenas. Como é que os povos indígenas serão responsabilizados por outras regiões que eles não têm acesso? Isso é uma inverdade!
Agora é lógico que os povos indígenas fazem o uso do fogo para sua subsistência através das roças tradicionais, mas o índice disso não se compara ao que a gente viu agora recentemente no desastre que está acontecendo na Floresta Amazônica. Além da gente estar sendo apontado como povos que estão vivendo em cima de minérios riquíssimos, que somos considerados pobres, que os povos indígenas são obstáculo para o desenvolvimento, agora somos acusados de que nós somos os responsáveis pela destruição da floresta.
Os povos indígenas mais do que nunca já são conhecidos como guardiões das florestas, isso está comprovado cientificamente. O modo de vida dos povos indígenas é o que conserva mais a floresta. É o que mantém a floresta em pé. Nas discussões sobre as mudanças do clima, os povos indígenas são protagonistas. As terras indígenas conservam as florestas que ainda permanecem vivas, é isso que contribui para o equilíbrio do clima no planeta. Essa é a preocupação de todo o mundo. A gente não descobriu isso. A gente já sabe disso desde sempre. Então são inversões de entendimentos. Inversões de valores. O povo brasileiro não pode cair nessas informações que não são verdades.
Os povos indígenas, não só no Xingu, mas de todo o Brasil, são os povos originários. Nós não chegamos em 1500 aqui no Brasil, nesse território que hoje é chamado de Brasil. Os povos indígenas já estavam aqui por tempos incalculáveis. E nós merecemos ser respeitados por causa disso.
Hoje o que mais se fala entre pessoas que são contra os povos indígenas é que “13% do território é muita terra pra pouco índio”. A pergunta que deveria se fazer é: o que sobrou do 100% para os povos indígenas que antes tinham toda essa terra indígena?
A outra pergunta que se deve fazer para pensar e refletir é: os povos indígenas sempre foram a minoria? Não! Fomos massacrados.
Massacrados de uma estimativa de uma população de 5 milhões, que depois foi reduzido a 150, 300 e agora que nós estamos tentando crescer a nossa população que hoje está estimada em 900 mil, nem a 1 milhão nós chegamos.
Ou seja, o que aconteceu nesse processo? Nós somos os vilões dessa história? Não! Essa história que o povo brasileiro precisa conhecer para respeitar os povos originários do Brasil. Qual é a ameaça que nós representamos para o povo brasileiro? Qual é a ameaça? Existem essas conversas de que os territórios indígenas ainda se tornarão países independentes. Que nós estamos entregando nossas terras para países estrangeiros. Não existem outras pessoas além dos povos indígenas que querem conservar e viver nessa terra em paz mais do que qualquer outro brasileiro. São os povos originários daqui. Nós não vamos deixar essa terra pra viver em outro país. É aqui que nós vamos viver, é aqui que nós vamos morrer.
Então, esse conceito precisa ser mudado. Nós estamos num momento muito perigoso de inversão dessa narrativa para o povo brasileiro acreditar que os povos indígenas são o lado negativo da história. Não é isso que nós queremos.
Precisamos lutar para levar a verdade para o povo brasileiro.
VEJA TAMBÉM:
`Reserva Extrativista Chico Mendes sofre com queimadas ilegais
Os índices de queimadas na região amazônica diminuíram com a chegada das chuvas, mas o cenário ainda é crítico! Milhares de hectares de floresta foram devastados e a nossa biodiversidade está virando cinza. Não esqueça a Amazônia!<
Uýra Sodoma, uma drag queen indígena em defesa da Amazônia
Uýra levanta severas denuncias sobre o modelo econômico imposto ao povo que vive em meio a floresta, utilizando a arte de potencia revolucionária com ramagens, sementes, conchas, folhas e flores como armas de reflexão, preservação e sustentabilidade
Guardiões do Fogo – Episódio Cerrado Amazônico
Percorremos uma das regiões mais devastadas pelos incêndios, em 2019. É na fronteira do Cerrado com a Amazônia que mais se desmata. E é na época da seca que os incêndios e os conflitos ficam mais intensos.