Especulação imobiliária 'queima' Alter do Chão

Brigada Amazônia da Mídia Ninja visita Alter do Chão, em Santarém (PA), e conversa com a população originária sobre exploração turística, resistência e cultura.

Texto por Natália Loyola de Macedo e fotos de Maihara Marjorie para Brigada NINJA Amazônia.

De acordo com The Guardian, jornal inglês, Alter de Chão ocupa o primeiro lugar no ranking de lugares mais bonitos do mundo com praias de água doce. Localizada em Santarém, no Pará, a vila é berço da população Borari que, hoje, divide o espaço com viajantes e com o mercado turístico em expansão. A beleza singular que reúne rios de extensões infinitas aos olhos humanos e vegetação tropical escondem os conflitos de interesses causados pela especulação imobiliária. No dia 14 de setembro de 2019, Alter do Chão também foi palco das ondas de incêndios e acabou chamando atenção do mundo sobre a realidade ali vivida.

As queimadas em Alter do Chão tiveram início no sábado (14), mas foi contida por completo apenas na quarta-feira (18). A situação do lugarejo repercutiu em veículos noticiosos de importância nacional e internacional. Comparado a outros lugares que também sofreram crime ambiental, Alter do Chão causou comoção significativa e esteve em grande evidência. Entre julho e dezembro, durante o verão amazônico, o lugarejo recebe quantidade expressiva de turistas. Também em setembro, Alter do Chão comemora a Festa do Sairé, manifestação artística local.

O primeiro foco de incêndio foi encontrado na Capadócia, área de mata localizada entre a Ponta de Pedra e Alter do Chão. No domingo, outros sete novos focos foram identificados. Temperaturas elevadas, estiagem, vegetação fina e rasteira e o vento, características desta época do ano, favoreceram o alastramento do fogo. A região queimada pertence à APA Alter do Chão – área de conservação ambiental.

O fogo consumiu a mata que fica próxima ao Lago Verde – considerado o cartão postal da região. A área do Lago passou ser cobiçada pela indústria turística e imobiliária. O crescimento urbano desenfreado se dá por demarcações de lotes em áreas públicas e venda destes – prática ilegal. A população originária, a fauna e a flora de Alter do Chão são prejudicadas com a exploração turística que acontece desde o início da década de 90.

A área atingida corresponde a 7,34% da APA – equivalente a 1.647 campos de futebol. De acordo com o Ministério Público Federal, a chamada Savana de Alter do chão foi a mais atingida pelo fogo.  A savana é um tipo de vegetação rara que está presente em apenas 7% do bioma.

“Então foi criado a APA, mas ela não funciona de fato. Muita gente entra na área e constrói. Derruba várias áreas com mata preservada. Sempre vem gente comprar terra. E, às vezes, vem e não fica. Faz vários lotes e vendem”, explica Damiles Borari, originária de Alter do Chão.

A Mídia NINJA foi a Alter do Chão para compreender a realidade local. Lá, a equipe descobriu que o Lago Verde é, para os indígenas, um local de  criar e perpetuar relações, seja com a natureza, com o alimento ou com outras pessoas. Em entrevista, Damiles Borari relatou o dia a dia de seu povo com a floresta.

“A nossa relação com o rio é desde pequeno. Eu nasci nesse meio. Eu nasci numa família que tem esse contato direto. Meu pai era pescador, meu avô era pescador, meu pai é caçador também, então eu sempre tive essa ligação forte”, diz Damiles Borari. “De manhã cedo, a gente acordava e mamãe já dizia que ia lavar roupa no rio, meu pai ia pescar e ia todo mundo para o rio. A gente não consegue nem colocar em palavras a importância que o rio tem para as nossas vidas. Principalmente as matas que é onde a gente tira nossa alimentação, o nosso sustento”, 

A indígena questiona a carência de participação popular na expansão turística de Alter do Chão. Com isso, a grilagem, a exploração ambiental e a poluição das águas transformam o vilarejo e os hábitos das populações que têm relação afetuosa com a floresta. Hoje, a área nobre está próxima do Lago Verde. Relatos afirmam que a construção da rodovia estadual Everaldo Martins, que liga Alter do Chão a Santarém, aumentou o fluxo de pessoas para o local e que famílias com maior poder aquisitivo passaram comprar terras.

Leila Boraris, membro do Suraras, coletivo de mulheres indígenas, conta que o rio esteve presente no cotidiano da sua família e que as mudanças aconteceram repentinamente. O coletivo Suraras surgiu com objetivo de reunir mulheres originárias para conversarem sobre a transição da vida tradicional na floresta à urbana, a relação delas com a natureza e fortalecer os vínculos femininos. O protagonismo das mulheres indígenas Borari no combate aos interesses econômicos e políticos da região está presente na história local.

“As crianças se encontravam no rio de manhã e iam pra escola. Depois, todo mundo chegava da escola e ia tomar banho de novo para poder almoçar e se encontrava no rio. Depois, ia almoçar e voltava ao rio para pegar água pra lavar louça e etc. O rio também era um ponto de encontro”, comenta Leila. “A vila foi crescendo a partir da estrada que liga Santarém a Alter do Chão. De repente a gente se viu numa situação que não podia mais beber a água do rio. E já era uma questão de saúde não beber. Tivemos que construir poço. Esse processo foi muito rápido”.

A prática comum é limpar a vegetação através das queimadas para que os terrenos estejam “limpos” e prontos para venda. A Secretaria de Meio Ambiente de Santarém acredita que o incêndio de setembro proveu de ação humana.

De acordo com o Ministério Público do Pará, vestígios de fogueira e latas queimadas foram encontrados na região do incêndio. Mas ainda não há evidências de crime doloso. Acusado por grilagem e desmatamento ilegal, Silas Silva Soares passou a ser suspeito também durante a última onda de incêndios. O MPF desconfia que ao menos um foco de incêndio tenha ocorrido em áreas invadidas por Silas.

À imprensa local, o advogado de Silas disse que “as autoridades devem basear-se em provas e não se curvem ao imediatismo de encontrar um culpado a qualquer custo”. Silas foi condenado a seis anos e dez meses de prisão por casos antecessores, mas se encontra foragido.

Em 2017, começou a tramitar o Projeto de Lei 1621/2017 na Câmara dos Vereadores da cidade. A PL diz respeito à construção de prédios de até 19 metros de altura. Na mesma época, estava para ser votado o Plano Diretor. A população originária estava insatisfeita e pediu consulta livre, prévia e informada já que as decisões podiam afetar seus direitos e bens.

As discussões da PL e do Plano Diretor estavam acontecendo separadamente. De acordo com Leila Borari, as duas leis passavam pelo debate sobre a construção de portos graneleiros e, por isso, deveriam ser discutidas juntas.

Alter do Chão pertence à região do Tapajós – local de escoamento de soja – onde está sendo estudada a possibilidade de mais um porto. O objetivo é diminuir 800 quilômetros do trajeto que sai de Mato Grosso e realizar a exportação do grão, sobretudo para Europa e China. Com maior escoamento, a tendência é aumentar a monocultura de soja na região. Construções de hidrelétricas também estão sendo estudadas para acompanhar o desenvolvimento econômico.

Caetano Scannavino, coordenador do projeto Saúde e Alegria, está há mais de trinta anos morando na região. Para ele, a forma de pensar os megaempreendimentos voltados para Santarém está equivocada, já que o relatório de impacto ambiental é realizado por projeto e não de maneira a pensar o conjunto de obras na mesma bacia hidrográfica.

Quando perguntado sobre o governo atual, Caetano diz que a retórica do presidente acaba fortalecendo quem está na ilegalidade e que ele segue a mesma lógica de desenvolvimento econômico em voga há anos. Baseia-se na exploração de recursos naturais e de pessoas.

“Isso também quer induzir a um debate para se alimentar e sobreviver politicamente em cima de uma polarização que eu me nego a alimentar. A questão que está em jogo é que tipo de desenvolvimento a gente quer. Se é um desenvolvimento para poucos ou é para todos, se é um desenvolvimento para sempre ou para agora”, afirma. “O que precisa ser colocado na mesa é que de 88 pra cá, a gente destruiu duas ‘Alemanhas’ de Floresta Amazônica para colocar no lugar 63% de pastos de baixíssima produtividade. O que o país não tem é um projeto para a Amazônia”.

Para o coordenador da ONG Saúde e Alegria, um projeto voltado para a Amazônia seria aquele que conseguisse criar relação entre cidade e floresta e trouxesse soluções sociais. A pobreza na Amazônia acaba favorecendo crimes ambientais por colocar pessoas em situação de vulnerabilidade à mercê de setores que lucram com a mata destruída.

O discurso de Jair Bolsonaro comprometeu o Fundo Amazônia – criado em 2008 com a intenção de captar recursos financeiros para manter a floresta tropical. Ricardo Salles, ministro do meio ambiente, desagradou países como Alemanha e Noruega ao dizer que usaria o dinheiro para indenizar proprietários rurais que foram desapropriados por estarem em unidades de conservação.  

“Ao invés de você brigar com a Alemanha e Noruega, o que você deve fazer é desenhar um projeto para Amazônia e apresentar as contas lá fora. Porque não é justo uma Amazônia que gera benefícios globais ter os custos de conservação locais”, opina. “Se essa floresta evapora, por dia, vinte milhões de toneladas de água que percorre em forma de ‘rio voadores’ para outras regiões e transformar lá em terras férteis, essa compensação precisa retornar. O indígena que está lá prestando serviço voluntário para manter a floresta em pé, recebe em troca mercúrio na água, bala, invasor e doença de branco. Se a lei que rege a sociedade hoje é a econômica. Então falemos de economia.”

Caetano é a favor da bioeconomia e de criar tecnologias incluindo conhecimento dos povos tradicionais da floresta. Ele acredita que, desta forma, geraria economia local, empregos, agregaria valor a produção florestal e beneficiaria um número maior de pessoas – diferente do agronegócio mecanizado.

“O país que detém a maior biodiversidade do planeta hoje, se tivesse uma postura mais inteligente, valorizaria o patrimônio que tem. A gente estaria pautando e não sendo pautado. Teria que ter um projeto de país que olhasse essa riqueza e que pudesse nos fazer crescer economicamente, socialmente e também politicamente perante as demais nações. Ao invés de internacionalizar a Amazônia, é o contrário. É nacionalizar a Amazônia e ‘Amazonizar’ o Mundo”, diz Caetano.

 “O ser humano vai ter que ser retirado do planeta e, talvez, isso seja uma boa ideia”

A Brigada de Alter esteve presente desde o início dos incêndios de setembro até o fim em um combate intenso contra o fogo. O coletivo se define como “grupo independente que trabalha de forma voluntária para proteger a floresta e as pessoas de Alter do Chão e região do Eixo Forte”. Hoje, é considerado um braço importante na preservação ambiental de Alter.

Pessoas envolvidas para combater os incêndios são formadas para tal. Com ajuda do corpo de bombeiros, a Brigada está conseguindo realizar cursos de formação para capacitar os interessados na monitoria e combate ao fogo. Para se proteger dos riscos das queimadas, o grupo se organizou e criou uma “Vakinha” e, com isso, puderam comprar equipamentos imprescindíveis para o trabalho que exercem. O grupo está sempre em alerta quando o sinal é de fumaça.

“Tem o sinal de fumaça, a gente vai para o atendimento. E dessa vez não foi diferente. Teve uma fumaça preta, então a gente sabe que é árvore e que está queimando. Não é folhagem, porque se não seria branca”, contou João Romano que há três anos trabalha na contenção de incêndio em Alter. “Desde o começo, a gente estava em contato com o corpo de bombeiros e apoiado pela polícia militar”. 

Para João Romano, Alter do Chão ganhou atenção por ser um dos pólos de referência na Amazônia, mas ele adverte que é preciso cuidado com outros pontos da floresta que vivem situações semelhantes. A primeira vez que Romano teve de enfrentar um grande incêndio florestal acabou vendo um grupo de quatis correndo em sua direção. O brigadista diz que nunca mais esqueceu tal imagem. Para ele, é motivador proteger a fauna e a flora.

Daniel também pertence à Brigada de Alter e explica que o grupo trabalha em três eixos: combate a incêndios, mobilização popular e articulação política. Daniel também esclarece que é importante ter relação pacífica com os dirigentes, já que estarão atuando independe dos governantes. Ele destaca que a Brigada não existiria sem os bombeiros.

Construir laço afetivo com a população de Alter do Chão não foi difícil para Daniel. Para ele, os amazônidas possuem conhecimento completo sobre a vida local. “Quando eu cheguei a Alter do Chão eu me percebi muito doente. Os caras que foram construir a minha casa sabiam tudo. Eles sabem construir casa, produzir o próprio alimento, têm um monte de filho e não têm medo disso”, afirma. “Na cidade a gente estuda para ser uma coisa e comprar o resto. E essa doença é que está levando o mundo pra onde ele está. A gente é um câncer. Se a floresta for derrubada e chegar num ponto que a gente não consiga regenerá-la, o ser humano vai ter que ser retirado do planeta e, talvez, isso seja uma boa ideia”. 

Festa do Sairé

“E vê o publico que nunca teve contato com a nossa língua e vê alguém cantando o refrão da nossa língua… isso é muito maravilhoso. A cultura e a luta não andam separadas, são uma só. São parceiras muito necessárias”, comenta Leila Borari.

Com duração de três dias, a festa do Sairé reúne elementos culturais e religiosos vindos da miscigenação entre indígenas e portugueses. A história santarena é essencial para a construção dos temas que serão abordados durante a festividade. Música, dança e rituais religiosos compõem a festividade folclórica. Com o passar dos anos, foi incluída a disputa entre os botos “Cor de Rosa” e os “Tucuxi”.

A procissão religiosa marca a primeira parte do Sairé. Depois, é o momento do ritual dos mastros, em que indígenas saem em busca dos mastros – retiram duas árvores para que possam plantar várias outras. O Sairé é, para alguns, o carnaval amazônico. Este ano, no “Çairódromo”, o tema de disputa foi “Fé que emociona, magia que encanta”. A brincadeira aconteceu em torno dos enredos “Alter do Chão, berço da vida” do Boto Cor de Rosa e “Resistência Borari” do Tucuxi. A festividade acontece no mês de setembro.

“Através da cultura, a gente consegue transferir conhecimento para outras pessoas”, explica Damiles. “Espalha para dizer pra todo mundo o que a gente faz. E essa festa do Sairé é uma das mais importantes. Hoje, algumas pessoas conhecem por essa presença dos botos. Mas a gente tem esse lado mais indígena que vai retirar nossos mastros, que vai plantar, que vai cuidar da natureza. Então tem toda uma ligação a questão da cultura pra gente”. 

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